Quero-te


Quero-te num lugar onde
te confundas com a claridade
pois é dessa luz que eu preciso
para iluminar meus olhos
cansados de escuridão.

Quero-te num lugar onde
te possa beijar num sufoco
como se os meus lábios quisessem
falar-te de uma só vez
toda a verdade e essa verdade
não fosse mais que um grande amor.

Quero-te num lugar onde
os nossos corações possam habitar
sem qualquer constrangimento
as veredas de um destino traçado
com a força do nosso querer comum.

Quero-te num lugar onde
seja fácil estar ao pé de ti:
precisar um afago e ter as tuas mãos
necessitar calor e ter o teu corpo
ansiar um beijo e ter a tua boca.

O silêncio soletra teu nome

O silêncio
apesar do ruído de fundo
é possível e incomensurável
permitindo
encetar o galope das palavras
fundamentais.
E nem a brisa tórrida
quase sufocante
consegue suster a força intrínseca
do que falta dizer
e se adivinha

o aroma das pétalas invade
inexplicavelmente
o contexto dos sentimentos
mais guardados e tangíveis
e há um murmúrio
talvez oriundo do Olimpo
possivelmente cantado pelos deuses
que se ouve a cada instante

o silêncio soletra teu nome.


Em segredo

diz-me              
(em segredo)
quanto veloz é o cavalo
da tua imaginação
talvez assim
possa compreender a razão de ser
desse olhar                                                       
mais do que profundo                                     
capaz até de inquietar                                     

diz-me 
(em segredo) 
o que te vai bem lá no fundo                          
da alma  
talvez assim                                                     
seja possível descortinar                                
os medos que transportas
nesse sorriso
precioso único de monalisa                               
que apetece perpetuar                                    

diz-me
(em segredo)
se o que sentes assim tão intensamente é
como desconfio
mais esperança do que tristeza
talvez assim
possa olhar tranquilamente o céu
dizer boa noite às estrelas
fazer o elogio da lua
e fingir que o mundo
não importa

diz-me
(em segredo)
em que medida gostas de mim
nesse teu modo próprio e absoluto
de poemar
talvez assim
seja mais fácil empreender o caminho
que há muito está traçado
para nós.


Em viagem

Parto como hei-de chegar: olhar porfiado
num horizonte imaginário, não irreal,
com as malas cheias de néctar
e um sonho na mão. Quem sabe,
um dia. Depois de chegar. Quem, sabe?

O percurso é longo, tão longo
que a náusea surge, incandescente.
O galope chama-se prosseguir. Mas,
não há voo que resista. Impaciência:
resquícios de uma viagem interrompida.

A paisagem muda, de novo.
E o céu, reparei, foi reconstruído.
Já não há futuro sombrio,
as nuvens afastaram-se,
e chegar é palavra de ordem.
Chegar. Depressa. É urgente chegar. Mas,
o comboio não tem asas.




Mãe

Mãe pode ser
apenas
uma palavra

ou pode ser
o sopro mágico de um anjo
protector
quase real
que ao-de-leve
nos toca
ao amanhecer

mas, para mim
Mãe há-de ser sempre
a definição exacta
do abraço eterno e mais profundo
do beijo doce e irresistível
da ternura mais forte e sentida
do olhar mais dócil e comprometido.



A noite traz-me incertezas



                                        
1. Eu queria abraçar a noite toda
    de uma só vez
    se a noite não fosse a dúvida que me resta, mas

    os sentidos revestem-se de uma cor
    profunda, divergente,
    e a escuridão dói-me de verdade
    porque não é este o lugar que eu queria.

    a intimidade desejada transforma-se
    no subterfúgio desnecessário.
    os ponteiros ousam mover-se
    remetendo a madrugada para uma cama incerta,
    e o meu pensamento é uma cavalgada
    incontrolável.

2. Onde está essa hora que eu anseio?
    onde está essa hora autêntica e redentora
    essa hora real concreta e definida
    que me dê todas as certezas que preciso
    e me leve esta angústia em que me enleio?



 

Espelho meu

                                         Para o Diogo R.
Nos teus olhos
transportas o Mundo todo
de uma forma inesperada
e absoluta

E como é incomensuravelmente
belo
e magnífico
confirmar nessa alegria transbordante
e incontida
todo o poder do teu sorriso

E que fácil se torna
adivinhar num mero e fugaz vislumbre
as poucas certezas que pairam
sobre as nossas vidas:

Como esta vontade irredutível
desde sempre sonhada
perdidamente ambicionada
de te tocar
num abraço único e profundo
de te beijar
de uma só vez e eternamente
de te dizer
que afinal és espelho meu.

Poema de estar aqui


Se eu pudesse medir a minha indiferença
(Ah! Se eu pudesse...),
então sim, talvez fosse um poeta de "vanguarda",
daqueles que não usam reticências em caso algum
daqueles que escrevem longe de tudo sobre tudo
daqueles que escrevem pedra em vez de corpo
daqueles que parecem frios e são o que parecem.
Mas estar aqui não é isso.
E eu estou aqui.


tempo nostálgico

1
são 4 horas duma tarde vazia
e queimo o tempo com os cigarros
que fumo

são 4 horas de todas as tardes
e ainda não te encontrei
que pena

2
chove
e em cada pingo de chuva
vejo teu rosto feito de nada
que me diz tudo.

o comboio parte às 9

o comboio parte às 9.
e eu ainda estou aqui.
será que vou chegar a tempo ?
bom também se não chegar
não tenho nada a perder.
eu queria ir
mas o comboio parte às 9.
e não espera por mim.
há mais comboios
mas não às 9.
sim eu sei o maquinista
poderia esperar por mim
mas os outros passageiros
seriam prejudicados
porque o comboio parte às 9.
e depois chegariam atrasados
aos seus destinos.
e o que conta não é o destino ?
sempre é melhor
que seja eu a perder o comboio
porque não sou (tão) prejudicado
pois não tenho destino:
o comboio tem e parte às 9.
chegarei a tempo ?

«céu muito nublado»

dizia assim o meteorologista
apontando com a vara
para quilo que convictamente
intitulava de sistema frontal.
leigo em questões do tipo olhei o céu:
um acinzentado enjoativo cobria-o.
optando pela lei do menor esforço
olhei em frente:
um homem sem pés pedia a quem passava
uma coisa que chamava de compaixão.
um pouco mais à frente três crianças
sujas e semi-esfarrapadas
clamavam que a senhora caridade
lhe saciasse a fome alimentícia
pois a outra já ninguém lhe podia tirar
era doença hereditária.
voltei a fixar o céu:
realmente estava nublado.
o meteorologista tinha razão.
só foi pena que tivesse sido incompleto.





apaixonei-me no autocarro 39




apaixonei-me no autocarro 39.
meu coração pulsava   desenfreado
só porque à frente dos meus olhos
se apresentava   estática   uma figura esguia
e discreta. mas plena de feminibilidade

apaixonei-me no autocarro 39.
durou dez minutos e cinco paragens

a minha ilusão:
tempo suficiente para imaginar
toda a dimensão dum amor impossível

apaixonei-me no autocarro 39.
azar o meu
fui logo apaixonar-me por uma mulher
de plástico

Só se escreve pai uma vez

                               
1. as histórias são velhas e será insuportável
    escutá-las. nem os contos de fadas me importam.
    ao menos por uma vez uma única vez
    vamos lá a ser realistas:

    só se escreve pai uma vez. é a vez
    que se escuta uma voz inconfundível
    na meninice de sempre. é a vez
    que nos mordemos de raiva com a vontade
    de beijar. é a vez
    que o sangue ferve na frigidez do nosso quotidiano
    automático. é a vez
    que o amor se revela na ânsia de escrever
    pai com letra maiúscula.

2. (peço desculpa pela interrupção
    o poema segue dentro de momentos)

3. podem ter a firme certeza que
    só se escreve pai uma vez.
    e deve-se fazê-lo sempre com letra
    grande. grande como um Pai.
       


Convicção para Meca


o oásis não existe. Meca talvez.
mas incompleta: faltas lá tu
porque te tenho porque te guardo.

que venha a tempestade que venha
e de areia meus olhos fiquem rasos
tão rasos que nem valha a pena
prosseguir.

Meca fica longe bem longe tão distante
como o infinito. mas hei-de lá chegar.
levo-te comigo. e se
guardar-te comigo representa muito
dizer-te minha significa tudo.

A tua boca é um rio

A tua boca é um rio.
Como é belo e suave o seu caudal
extenso e incolor.
E que ternas e envolventes são as ondas
que o invadem e o possuem.

Quero-o desaguado em mim.
Hei-de chamar-lhe meu. Porque
a tua boca é um rio
onde sacio toda a minha sede
onde abarcam todos os meus beijos
onde flutuam todos os meus sonhos.

E quando vier a tempestade
podes guardar-te no porto da minha paixão.
Estará sempre aberto para ti. Talvez
só para ti. Certamente só para ti.

É. A tua boca é um rio.
E como é bom morrer a pouco e pouco
afogado na doçura do teu rio.