Estranho habitante



1. transportava nos gestos
   o limiar das palavras que lhe brotavam
   da boca. incandescentes
   e cruéis como o sentido exacto
   das suas origens.

   fazia do monólogo
   que lhe pendia dos lábios
   o centro irónico do universo
   (dele).

2. num vago olhar
   foi capaz de constatar
   que a esplanada do café
   era pequena demais
   para suportar o peso do seu discurso
   intemporal. talvez por isso
   decidiu retirar-se.

   houve alguém que disse
   que devia estar com uma grande pedrada.


    um dia disseram-me que era poeta.

3

Na maré dos teus olhos


É na maré dos teus olhos
que eu invento
naufrágios de ternura

É na maré dos teus olhos
que eu descubro
a cor insensata das manhãs

É na maré dos teus olhos
que eu assisto
ao pôr-do-sol do meu desespero

É na maré dos teus olhos
que eu navego
em barcos feitos de espuma.


As mãos tecem o fogo



Como se torna estranha e ilógica
a lição do amor, quando as mãos
se revelam subitamente profundas.

É como se tudo o resto se passasse
envolto em malhas de rotina
e não pela vontade transparente
das coisas mais belas.
É como se o fogo pudesse existir
para lá da chama, sustentando
aquela que é a paixão maior.
É como se esse momento único
perfizesse séculos de ilusão,
insípidos mas precipitados.

Como é versátil o amor de repente,
quando as mãos tecem o fogo
e os corações se incendeiam...

Culpado



Haverá um dia em que alguém
me apontará o dedo acusatório
sobre a intenção do meu lirismo
não mais que feito de verdade.
Não sei a que distância fica
essa hora que me há-de condenar,
não sei sequer da cor do sorriso
de circunstância que ostentarei.
Não sei. Mas
adivinho desde já a frustração
do tribunal que me julgar
quando disser bem alto
da razão que me assiste:
- Sim, sou culpado...
Fui eu quem mais amou!

Rosto de luz


no horizonte projecta-se indelével
a face divina que escondes
na ânsia do sorriso prometido
à chegada

ver-te descomprometida com a realidade
entusiasma meu âmago
na versátil razão de ser dos mais sentidos
estados de alma

sonhar leva-me de volta à antiguidade
perco-me em tempos imemoráveis
quando a força da palavra comandava
o coração

a tempestade antes só prenunciada
pela força do amor temida
mas assumidamente enfrentável
surge
inevitável
cruel
omnipresente
promovendo a instabilidade

os sentimentos esses
são profundos e capazes de guardar-te
da fúria do vento e das águas
para lá do último oceano: onde se esconde
misteriosamente teu rosto de luz

Deixa-me aprender a cor dos teus olhos



Apeteces-me por entre olhares profundos.
O teu corpo é o prazer que suponho
e já me sinto estremecer, possuído.
Os meus dedos delineando a nudez insinuada
e cavando na tua pele as carícias procuradas.
Ambicionarei muito mais. Logo.

Flutuo, inseguro, nas margens, mas
convicto de um calor repartido
anseio-te
de peito ferido e ternas vistas
anseio-te
e já me sinto teu
como se sempre te tivesse pertencido
anseio-te. Ainda.

Quero-te minha, amor, assim
tão minha
toma lá uma rosa, dou-te tudo,
mas deixa-me aprender a cor dos teus olhos,
essa transparência que me ilumina.

Já não importam os dias



Não, já não importam as guerras,
nem a cumplicidade do silêncio imposto
com a overdose fatal dos nossos sonhos.
Estandartes levantados por mãos impróprias
também já não importam.

Já nem sequer importam as mãos
à procura das horas mágicas,
nem a ousadia transbordante dos segundos,
e as flores muito menos importam
porque é insuportável o seu odor.

Tão pouco importam os velhos sorrisos,
plenos de conveniência,
e a música monótona desta sinfonia
de autores duvidosos.
Os abraços que se percam, absortos,
porque já não importam.
Os beijos são inúteis, também
já não importam.

Já não importam os dias. Claros
ou escuros que eles sejam. Não importam.
Restam as noites brancas e esquecidas,
onde os orgasmos se repetem e a claridade
se recusa.
Para sempre.

Pássaro ferido

O poeta magoado não luta não vive o dia
não tece seus sonhos, vai em desfilada
contra o tempo percorrido contra a corrente
natural das coisas importantes que não param
nem podem parar por razões algumas.
Vai contra si mesmo quando se desama
e faz disso pretexto de existência.

O poeta magoado sofre a cada instante
como uma necessidade e não como um castigo,
até que suas chagas sangrentas se revelem
a horas de sarar por si, qual pássaro ferido
voando sem destino
à procura de uma réstia de Sol
promessa mais que redentora
breve tão mais quanto possível
mas desde logo esperança renovada.

Um poeta, mesmo magoado, não chora,
deixa antes que seu canto triste
seu lamento mais profundo e doloroso
tomem conta de sua alma sonhadora.
E quem vir por essas ruas fora
uns olhos mortiços e distantes,
carregados de uma secular resignação,
pode estar certo de que pertencem
a um poeta magoado.